No
dia 2 abril, o apóstolo do Brasil será canonizado! Um homem de Deus que soube
acolher o chamado vocacional e viver nos inícios do Brasil protagonizando a
fundação de colégios, cidades, entre as quais a do Rio de Janeiro. O Papa
Francisco nos dá esse belo presente!
São dias de alegria indizível estes em que, de corações
agradecidos, vivemos a canonização do Beato José de Anchieta (1534-1597),
sacerdote jesuíta que, tanto no campo material quanto no espiritual, muito
trabalhou pelo Brasil e, por esta razão, recebeu com carinho e justiça o
codinome de “Apóstolo do Brasil”.
Antes de penetrarmos diretamente na
vida desse grande homem de Deus, atentemo-nos para o rico significado
catequético do momento em que estamos celebrando: uma canonização. Daí a
questão: qual é, na Igreja, o real significado dos verbos beatificar e
canonizar?
Beatificar é celebrar, em Roma ou fora
dela, um ato solene no qual o Papa, pessoalmente ou através de um legado seu,
declara que o (a) Servo(a) de Deus pode ser venerado(a) como Bem-Aventurado(a)
ou Beato(a) por meio de uma festa em lugares delimitados como, por exemplo, as
cidades em que viveu, atuou, morreu.
Canonizar é a ação pela qual o Papa
declara que o(a) Bem-Aventurado(a) é Santo(a) ao inscrevê-lo no cânon
(catálogo) dos santos, por isso se fala em canonização, termo utilizado pela
primeira vez no século XII, em uma carta de Udalrico, Bispo de Constança, ao
Papa Calixto II (1119-1124).
Tanto a beatificação quanto a
canonização são funções reservadas ao Santo Padre – especialmente, de modo
formal, a partir do século XII, com o Papa Alexandre III (1159-1181) –, embora
as cerimônias correspondentes possam ser oficiadas por um delegado papal.
Requer-se, para se declarar que alguém é beato(a) ou santo(a), a comprovação
das virtudes heróicas do(a) candidato(a) nesta vida, de modo que ele(ela)
mereça, por graça divina, gozar, atualmente, da visão de Deus face a face no
céu. De lá, pode ser invocado oficialmente para interceder por nós e nos servir
de modelo enquanto caminhamos nesta Terra rumo à Pátria definitiva.
Via de regra, são exigidos dois milagres – geralmente de
recuperação completa da saúde –, como sinais comprobatórios da santidade do(a)
Servo(a) de Deus em questão: um para a beatificação e outro para a canonização.
Todavia, pode acontecer – como é o caso de Anchieta – o que chamamos de
“canonização equipolente ou equivalente” e, para que ela ocorra, devem ser
preenchidos três requisitos básicos: 1) a prova do culto antigo ao candidato a
santo; 2) o atestado histórico incontestável da fé católica e das virtudes do
candidato; 3) a fama ininterrupta de milagres intermediados pelo
candidato.
Isto posto, resta-nos regozijarmos,
enquanto católicos e brasileiros, pela inscrição do nosso querido José de
Anchieta no catálogo dos Santos por determinação do Santo Padre, o Papa
Francisco, 34 anos depois de ser declarado Beato pelo Papa João Paulo II, em 22
de junho de 1980, ainda que o processo de beatificação tenha sido iniciado no
já distante século XVII.
José de Anchieta nasceu em São Cristóvão ,
Tenerife, uma das ilhas espanholas do Arquipélago das Canárias, em 19 de março
de 1534, dia dedicado, no calendário litúrgico, a São José, patrono da Igreja.
Daí o seu nome de Batismo ser José de Anchieta.
Após estudar no famoso Colégio de Artes de Coimbra, ingressou, aos
17 anos, na Companhia de Jesus, dos Jesuítas, Ordem fundada por Santo Inácio de
Loyola, em 1539 e aprovada pelo Papa Paulo III, em 1540. Recebeu aí boa
formação em filologia e literatura e, sobretudo, aprendeu que vivemos neste
mundo para “conhecer, amar e servir a Deus e, mediante isso, salvar nossa
alma”. Aqui, tudo o que fizermos deve ser “Para a maior glória de Deus”.
Contudo, tão logo se fizera jesuíta foi provado com uma grave doença
ósteo-articular, com fraqueza e dores em todo o corpo, durante dois anos, razão
pela qual os superiores, após ouvirem os médicos, decidiram enviá-lo ao Brasil
na esperança de que o bom clima da terra lhe fizesse bem. Era a ação
providencial de Deus em sua vida e na dos brasileiros, daqueles e dos nossos
tempos.
Chegou à Bahia de Todos os Santos, Salvador, em 13 de julho de
1553, com apenas 19 anos de idade, como irmão jesuíta, com um único objetivo:
salvar almas para Cristo. De lá, deveria ir, junto com o Pe. Manuel da Nóbrega,
seu superior, para a Capitania de São Vicente, litoral de São Paulo, a fim de
catequizar indígenas e colonos. Como a viagem era também por mar, um fato
inesperado aconteceu: no Sul da Bahia uma forte tempestade surpreendeu as duas
embarcações e o barco em que estava Anchieta acabou ficando encalhado nos
recifes.
Enquanto o veículo de viagem era
consertado, conta-se que Anchieta, consciente de que depois da vinda de Cristo
“o tempo se fez breve” (1Cor 7,29), foi à procura dos silvícolas da região e
começou a lhes falar de Deus. Em uma dessas caminhadas, levaram-no até uma
indiazinha que, doente, se encontrava em seus últimos dias nesta Terra. O padre
a instruiu na fé e a batizou, dando-lhe o nome de Cecília. Era o primeiro
sacramento que “o Apóstolo do Brasil” ministrava em seu tão vasto território de
missão.
Chegando, finalmente, a São Vicente,
Anchieta não parava um só instante: fazia contato com os habitantes do lugar
para falar-lhes de Deus e, ao mesmo tempo, plantar as bases de uma vida mais
digna e justa para todos. Não se limitou, porém, apenas à região praiana, mas,
ao contrário, subiu a Serra do Mar, chegou ao Planalto de Piratininga e, no dia
25 de janeiro de 1554, festa da Conversão de São Paulo Apóstolo, participou da
fundação do colégio da vila de São Paulo de Piratininga, onde também lecionou.
Ao lado do colégio, construiu-se uma capela na qual foi celebrada a primeira
Missa, em 25 de agosto daquele mesmo ano. Estava, assim, nascendo o núcleo da
cidade que, com o passar dos anos, se tornaria uma das maiores metrópoles do
mundo: São Paulo.
Foi superior da Capitania de São Vicente e também provincial dos
jesuítas por 10 anos, ou seja, de 1577 a 1587. Logo aprendeu a língua tupi,
falada pelos indígenas, e elaborou a primeira gramática tupi-guarani, traduzida
para o alemão e o latim. Nosso santo criou, desse modo, uma língua-geral, que
foi usada no Brasil até 1750, ano em que foi imposta a língua portuguesa.
Compôs músicas, versos, danças e teatros em linguagem indígena. É chamado o “pai
do teatro brasileiro” e grande nome da cultura nacional. Dentre seus dez livros
está o que leva o título de “Poemas à Virgem Maria”, cuja maior parte foi
redigida nas areias de Iperoig (hoje Ubatuba, SP), no período em que ficou
refém dos índios tamoios. Escrevia em português, espanhol, latim e
tupi-guarani.
Parecia arder em Anchieta as palavras
de São Paulo, o Apóstolo das gentes: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho”
(1Cor 9,16). Daí ele valorizar a espontaneidade dos silvícolas que buscavam
conhecer e praticar a fé católica, segundo se depreende das correspondências
que o religioso mantinha com seus superiores na Europa. Em carta ao Padre Diogo
Laínes, geral dos jesuítas, datada de 1565, Anchieta, ainda refém dos índios em
Iperoig, relata que todas as manhãs, Pindobuçu, o chefe da tribo, ia visitá-lo
para perguntar coisas sobre Deus. O religioso lhe mostrava, então, imagens de
uma Bíblia ilustrada que possuía e isso causava muita admiração no índio que,
na manhã seguinte, voltava para aprender mais (cf. Cartas. São Paulo: P.H.A Viotti, 1984, p. 222, vol. 6 das Obras
Completas). Ao se referir aos tupis de São Paulo, o religioso jesuíta diz que
eles “voluntariamente (...) vivem como cristãos, correspondendo plenamente ao
esforço de seus catequistas” (Cartas,
Jes. III, 316-317).
Nota-se, por esses dados, que poderíamos multiplicar o quanto
Anchieta, agora nosso santo, viveu o ardor missionário que motivava os
religiosos europeus a rumarem para as Américas, segundo se lê, com muita
clareza, nesta constatação: “A única conversão que os evangelizadores
pretendiam (e, em boa parte, conseguiram) era a conversão no plano sobrenatural: aceitação interna, sustentada pela
graça de Deus, da fé na revelação divina, seguida da mudança de vida no intuito
de ajustá-la aos preceitos divinos, como preparação para a vida eterna. Esta
foi a suprema missão que Cristo confiou à sua Igreja: ‘Ide pelo mundo inteiro,
proclamai o Evangelho a todas as criaturas. Quem crer e for batizado será
salvo, quem não crer, será condenado’ (Mc 16,15s)” (João E. M. Terra. Catequese de índios e negros no Brasil
colonial. Aparecida: Santuário, 2000, p. 38).
Esse ideal voltado ao sobrenatural não
fez, no entanto, de Anchieta um alienado das coisas deste mundo. Ele bem
parecia antever aquilo que, cerca de 410 anos depois, o Concílio Vaticano II
(1962-65) ressaltaria na Gaudium et Spes:
“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.
Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são
guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e
receberam a mensagem da salvação para comunicá-la a todos. Por este motivo, a
Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história.”
(n. 1). Daí, em 1555, por ocasião das invasões francesas ao Rio de Janeiro, ele
esteve ao lado de Estácio de Sá, então governador, ajudando a conscientizar o
povo de que não deviam aceitar os intrusos, pois eles planejavam dividir nossa
gente.
Segundo o Postulador da causa, Padre César Augusto dos Santos, SJ:
“Em 1º de novembro de 1566, Mem de Sá, o visitador, padre Inácio de Azevedo, o
provincial, padre Luís da Grã, o segundo bispo do Brasil, Dom Pedro Leitão,
José de Anchieta e outros jesuítas partem para o Rio de Janeiro, chegando à
cidade no dia 19 de janeiro de 1567. Eles partiram na armada enviada pelo rei
de Portugal, comandada pelo capitão Cristóvão de Barros. Imediatamente no dia seguinte
à sua chegada, Mem de Sá, confiante na intercessão do padroeiro da cidade, São
Sebastião, cuja festa litúrgica era naquele dia, desfechou um assalto ao forte
que estava no atual Outeiro da Glória, o forte de Ibiraguaçu-mirim. Conta
Anchieta, em sua “Informação do Brasil e suas Capitanias”, que depois de
destruir dois fortes, Ibiraguaçu-mirim, na foz do rio da Carioca e Paranapucuí,
na Ilha de Maracajá, atual Ilha do Governador, Mem de Sá mudou a cidade para o
Morro de São Januário, depois chamado Morro do Castelo, de onde se tinha uma
visão privilegiada da entrada da barra. No início do século 20, o morro foi
demolido e o local ficou conhecido como Castelo ou Esplanada do Castelo. No
ataque a Ibiraguaçu-mirim, Estácio de Sá, verdadeiro baluarte durante os dois
anos da cidade, foi mortalmente ferido, vindo a falecer no dia 20 de fevereiro.
Anchieta, que o acompanhou muito de perto, assim escreveu sobre esse capitão:
“tão amigo de Deus, tão manso e afável, que nunca descansa de noite e de dia,
acudindo a uns e a outros, sendo o primeiro nos trabalhos...”
Contudo, como já vimos nesta reflexão,
o que mais se destacava em Anchieta era o seu zeloso sacerdócio ministerial.
Queria ele consumir-se como a chama de uma vela para o bem de todos,
ministrando os Sacramentos, lecionando – aos índios pequenos ensinava latim e
aos jesuítas europeus dava aulas de tupi – ajudando na edificação de vilas onde
o povo pudesse viver dignamente. Morreu com 63 anos, no povoado que ele mesmo
havia ajudado a edificar em 1569, Iritiba (hoje Anchieta, ES), na Capitania do
Espírito Santo. Era o dia 9 de junho de 1597.
A partir daí, muitas pessoas passaram a
recorrer ao “Apóstolo do Brasil” a fim de que ele intercedesse junto a Deus por
elas. Nasceram disso muitos relatos de graças alcançadas pela intercessão de
Anchieta entre nós, especialmente no campo da restituição da saúde, bem como a
narração de fatos lendários e pitorescos como este: “Durante a vida do Pe.
Anchieta (1534-1597), um barqueiro garantia a quantos quisessem ouvir. A barca
em que viajava o Pe. Anchieta afundou. O padre ficou retido no fundo pela barca
virada. E o barqueiro, até uma hora depois, viu o Pe. Anchieta tranquilamente
lendo seu breviário lá, embaixo da água. Quando o retiraram, nem o padre, nem o
livro haviam se molhado” (Oscar G. Quevedo. Milagres,
a ciência confirma a fé. S. Paulo: Loyola, 2000, p. 296).
Não importa debater aqui se tal fato
ocorreu ou não, o que nos interessa é frisar o quanto o povo tinha Anchieta na
conta de santo. Tão santo que Deus como que o “plastificara” contra os
acidentes naturais... Contudo, importa frisar que a santidade nem sempre vem
acompanhada de grandes portentos. Ela pode ser fruto de uma vida simples,
escondida em Cristo, mas que faz, cotidianamente, a vontade do Pai. Mais: a
narrativa nos traz uma lição: ainda que debaixo das águas do mar da vida que
querem nos afogar, não percamos a serenidade, seguremos firmes nas mãos de Deus
e sigamos adiante, certos de que Ele não chama ninguém à mediocridade, mas,
sim, a ser santo como Ele mesmo é santo (cf. Lv 19,2; Mt 5,48).
Para atingir esta tão ousada meta é
que, agora, pedimos confiantes: São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil, rogai
por nós!
Orani João, Cardeal
Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de
São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ