Nas
reflexões que fazemos a respeito da Caridade dentro dos temas deste triênio do
Plano de Pastoral de nossa Arquidiocese deparamo-nos, não raras vezes, com
belos e até heroicos exemplos de vivência desse amor fraterno, serviçal e
desinteressado que, por ser o cerne da vida cristã, não aparecem na grande
mídia e nem são imitados, infelizmente, pelos nossos irmãos e irmãs batizados.
A virtude heroica foi o apanágio dos
grandes santos. Um vivo exemplo a ser imitado é o do Padre Damião de Veuster
(1840-1889), sacerdote belga que se dedicou inteiramente aos leprosos de
Molokai – território do Havaí, no Oceano Pacífico, mais conhecido como “ilha
maldita” devido ao grande número de hansenianos – até ele próprio ser também
afetado e consumido pela lepra, causa que o levou a se fazer merecedor do
epíteto: “Padre Damião, o leproso de Cristo”.
Recordo com muito carinho que, ainda
adolescente, e quando ainda se faziam revistas em quadrinhos com a vida dos
santos, essa biografia me comoveu muito. Depois tive a alegria de celebrar a
missa em ação de graças pela sua canonização aqui no Rio de Janeiro, em uma das
casas de sua congregação. São dados que nos fazem contemplar que a caridade é
ir ao encontro do outro, dando a própria vida.
Damião, cujo nome de batismo era
Joseph, nasceu em 3 de janeiro de 1840, em Tremeloo, na Bélgica, e era o sétimo
dos oito filhos do casal Veuster. Dessa família, duas moças, Eugênia e Pauline,
se tornaram religiosas ursulinas e dois rapazes, Augusto e Joseph, sacerdotes
religiosos na Congregação do Sagrado Coração de Jesus, sendo que este último,
com o nome religioso de Damião, veio em missão para as ilhas do Havaí, em 1864,
com 24 anos, sendo aí ordenado sacerdote.
Tão logo recebeu o sacramento da Ordem,
pôs-se a trabalhar com as ovelhas que lhes foram confiadas: visitava os
doentes, construía igrejas e escolas, aconselhava os duvidosos, ministrava os
sacramentos, percorria seu vasto território de missão a cavalo ou de canoa
improvisada, fazendo com que a sua mão fosse a mão amorosa de Cristo estendida a
todos os homens e mulheres que cruzavam seu caminho.
Em 1873, em uma reunião dos
sacerdotes-missionários com Monsenhor Maigret, vigário apostólico, surge a
notícia de que a ilha de Molokai havia se tornado um local para o confinamento
de leprosos, ou seja, uma espécie de vergonhoso “campo de concentração” no qual
os infectados pela lepra moravam em míseros casebres, recebiam apenas roupas e
alimentos, mas não dispunham de assistência médica e religiosa, embora entre os
infectados existissem muitos católicos.
O relato da situação degradante da
“ilha maldita” mexeu com os zelosos missionários, que se propuseram ir para
aquela região onde imperava a dor, o desânimo, o abandono, enfim, o aviltamento
do ser humano doente e condenado a viver longe de tudo e de todos. Padre
Damião, depois de refletir um pouco, lembrou-se de que, por ocasião de seus
votos religiosos, se deitara no chão para morrer com Cristo em Deus (cf. Cl
3,3) e, uma vez morto para o mundo, seu desejo era apenas o de entregar-se,
incondicionalmente, aos mais necessitados entre os necessitados desta terra.
Rompeu, então, a curta reflexão para
dizer ao seu Bispo: “Excelência, de todos os Distritos o meu é o que apresenta
o maior número de leprosos. Muitos católicos, conhecidos meus, estão atualmente
confinados em Molokai. Já
tenho certa prática de lepra. Peço a V. Excia. que me envie”. O Bispo, porém,
muito paternalmente, respondeu-lhe: “Eu nunca teria ousado impor a alguém uma
tarefa tão difícil. Mas diante da generosidade da tua oferta, aceito-a com
alegria. Partiremos juntos; eu mesmo te apresentarei aos nossos leprosos
católicos”. Todos sabiam que ele estava partindo para uma viagem sem volta.
Ninguém poderia retornar dessa ilha.
Talvez, hoje, não tenhamos clara noção
do que isso significava nos fins do século XIX: a lepra era considerada uma
epidemia, moléstia altamente contagiosa que requeria – por razões sanitárias e
para evitar a propagação – isolamento (cf. Lv 13,45) e distanciamento dos
demais conterrâneos (cf. Lc 17,11-19). No entanto, Padre Damião quer quebrar
esse estigma e, despretensiosamente, ganhar a confiança dos doentes da ilha,
daí se pôr a fazer as refeições com eles em suas próprias vasilhas, acariciar
as crianças contaminadas, abraçá-los, apertar-lhes as mãos, conviver com o
cheiro fétido dos chagados, como se nenhuma barreira houvesse entre ele e os
doentes.
Tais gestos fizeram com que o ambiente
desolador começasse – segundo constatação das autoridades havaianas e do próprio
Bispo que lá voltou em 1875 para ministrar crisma a 135 pessoas – a mudar para
melhor. Não demorou surgirem na ilha dois orfanatos, um hospital, uma nova
igreja, casas mais confortáveis para os habitantes insulares, banda de música,
cemitério digno onde as mulheres e homens eram sepultados decentemente em
caixões de madeira e não mais embrulhados em panos como indigentes etc.
Padre Damião foi, por esses atos,
notícia na imprensa do mundo todo e, em contrapartida, recebeu muitas ajudas,
em espécies e financeiras, de vários países, além de conseguir seguidores –
sacerdotes, religiosas, enfermeiros, médicos – que, como ele, decidiram se
internar em Molokai para prestarem melhor auxílio aos enfermos, não obstante
algumas acusações que rotulam o caridoso sacerdote de ser exibicionista,
imprudente, usurpador do dinheiro alheio etc. (sempre acontece isso por parte
de grupos contrários e que são as cruzes dos que se dedicam generosamente aos
irmãos). Todavia, ele suportou todas as adversidades com ânimo forte e não se
deixou vencer pelo mal, mas procurou, como ensina São Paulo, vencer o mal com o
bem (cf. Rm 12,21).
Eis, porém, que, no ano de 1877, Padre
Damião percebe manchas brancas nos braços e nas costas, sente calafrios,
inchaço e dores nos pulsos, percebe, mesmo que ainda sem grande certeza, que a lepra
o acometera, mas a confirmação vem apenas sete anos depois, quando passa pela
ilha o microbiólogo Professor Arning e lhe dá um diagnóstico preciso. Ele
contraíra a terrível doença daqueles tempos, mas, longe de se revoltar, bradou
forte: “Estou leproso. Obrigado, meu Deus!”
Sem se deixar abalar, continuou todas
as suas atividades pastorais e caritativas até poucos meses antes de sua morte,
ocorrida em 15 de abril de 1889, entre alguns de seus auxiliares e, de um modo
muito especial, junto aos seus amados leprosos, nos quais via a figura de
Cristo desfigurado no caminho do Calvário, a precisar do auxílio de um Cirineu
que tivesse forças para ajudá-los a carregarem suas pesadas cruzes naquele
verdadeiro lugar de desolação e morte.
Isso ele mesmo expressa ao Padre Panfílio (Augusto), seu irmão de
sangue e de hábito, em carta datada de 09/09/1887, ao escrever: “Com esta
esperança, aceito a minha cruz pessoal e esforço-me por carregá-la segundo o
exemplo de Simão Cirineu, atrás do nosso Divino Mestre. Ajuda-me com as tuas
orações, eu suplico, a fim de que eu encontre a força para perseverar e chegar
serenamente ao cume do Calvário. Embora a lepra já tenha causado danos ao meu
corpo, desfigurando-me um pouco, continuo forte e robusto. As intensas dores
que há tempos eu sofria nos pés desapareceram. A doença ainda não me atacou as
mãos; continuo, pois, a celebrar a Santa Missa. Esta graça me consola, seja por
causa de meus interesses espirituais, seja por causa dos meus numerosos
companheiros de desgraça”.
Ao refletir sobre esta comovente
história, talvez pouco conhecida, do Padre Damião é bom que fique marcado: nos
lugares em que às vezes menos se imagina há um filho de Deus ajudando – mesmo
com risco à própria vida – seus irmãos necessitados de pão espiritual e
material, porque, a exemplo de Cristo, ama verdadeiramente com o ágape, amor fraterno, serviçal,
desinteressado. E disso a Igreja Católica do Rio de Janeiro e do Brasil se
alegra e dá ação de graças a Deus pelas múltiplas e silenciosas ações práticas
de caridade.
Certo é que Deus não nos pede,
ordinariamente, essas façanhas. Elas requerem uma graça de estado própria a
sustentar tão grande missão em favor do próximo espezinhado pela dor física,
causada pela moléstia contagiosa, e psicológica, oriunda do abandono de seus
parentes, amigos e da segregação aplicada pela própria sociedade que outrora o
acolhia para produzir e consumir seus lucrativos produtos.
Possa o exemplo de o Padre Damião levar-nos à incômoda, mas necessária
pergunta: Quantos minutos da nossa vida dedicamos ao próximo mais necessitado?
Orani João,
Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo
Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ