terça-feira, 20 de março de 2012

Hoje livre sou

Carlos Moiloi

“Sentido na vida a minh’alma encontrou, escravo eu fui e hoje eu sou mais livre aos teus pés, agora eu posso declarar, hoje livre sou”. A canção “Hoje livre sou”, do cantor e compositor Walmir Alencar, foi tocada na ação de graças da profissão solene da carmelita descalça Flávia Gomes Cruz, de 25 anos, realizada na manhã de 10 de março, no Convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.

A letra da canção pode até confundir quem foi à celebração ou quem chegar a visitar a religiosa, que atende num locutório, separado por duas grades de ferro. Nem no dia da profissão ela saiu da clausura, e agora, professa, vai ser sempre assim, até o fim de sua vida. Ela só poderá sair por extrema necessidade, como por exemplo, se precisar ir ao médico, para cuidar de sua saúde.

A decisão da Flávia de ficar “presa” em um carmelo, à semelhança de milhares de homens e mulheres que já fizeram essa opção na história da Igreja, não foi para isolar-se do mundo, mas para dar resposta a um chamado, para viver de forma concreta o sentido da liberdade dos filhos de Deus. A vocação monástica e, principalmente, a contemplativa é um estilo de vida que faz parte da tradição do povo de Deus, e tem contemplado a Igreja com grandes santos e santas.

— O carmelo é um campo fértil de oração e de contemplação. Aqui não entra quem quer descansar ou fugir do mundo. Nem quem vive ou já passou por uma frustração, mas somente quem quer buscar a Deus, disse Flávia.

A Ordem Carmelita tem seu berço no Monte Carmelo, na Palestina, onde Elias, o maior profeta do Antigo Testamento, seguiu uma vida de oração e silêncio. O eremita mais conhecido é Santo Antão, que viveu no quarto século, considerado o pai da vida monástica. A reforma do carisma carmelita é atribuída a Santa Teresa de Ávila, no século 16, na Espanha, carinhosamente chamada por seus seguidores como Santa Madre.

Inquieto, o coração de Flávia só encontrou o sentido da vida quando concretamente conheceu a Deus. A sua trajetória, até chegar ao momento da profissão religiosa, é de uma profunda experiência do amor de Deus: “Tenho sede da tua graça, cada dia mais. Sou mais forte e vou mais longe quando aqui estás. Com palavras de amor te adoro, Senhor”.

Fluminense de São Gonçalo, Flávia nasceu em 31 de março de 1986, filha do mecânico Jorge Cruz e de Elizabete Gomes Cruz. De família católica não praticante, tem mais um irmão e duas irmãs.

Sempre gostou de esportes e música. Tinha o hábito de dançar, de ir à praia. Quando estudante do Colégio Amaral Peixoto, chegou a ganhar uma medalha de ouro na modalidade de arremesso de peso, numa competição entre escolas intermunicipais.

Ainda adolescente, fez o catecumenato na Paróquia São Judas Tadeu em preparação ao Crisma, que recebeu em 12 de outubro de 2003. No dia, sem entender a razão, ganhou de um rapaz desconhecido um santinho de Santa Teresinha do Menino Jesus e um livro de sua biografia: “História de uma alma”. Para complementar a preparação, chegou a fazer um curso de orientação religiosa.

Engajada na vida da Igreja, começou a frequentar o grupo de jovens Adonai. Sempre que podia, estava presente nos eventos promovidos pela Toca de Assis.

A sua vida ficou “desconcertada” quando participou em janeiro de 2004, a convite de uma amiga, de um retiro vocacional, promovido pelo Seminário de São José, da Arquidiocese de Niterói. Ao se sentir tocada pelo amor e pelo chamado de Deus chorou muito, mas saiu do encontro determinada a mudar o rumo de sua vida.

Comprometida em casamento, a primeira coisa que fez foi terminar o namoro de dois anos e oito meses, no dia do noivado, contrariando a família.

Por incentivo do diretor espiritual, Padre Giancarlo de Assis, de Niterói, fez, durante 18 meses, um curso de enfermagem. Para pagar as mensalidades, trabalhou como babá e numa clínica de estética. Ao fazer estágio em um hospital, as colegas a censuravam ao ver sua participação diária na missa e por se confessar toda a semana. Depois de visitar o Carmelo da Santíssima Trindade, em Tanguá, foi no Carmelo São José, em Jacarepaguá, que teve sua primeira experiência com a vida monástica, trabalhando como enfermeira. Chegou trêmula, sem saber como se comportar em uma “casa de gente santa”, mas ficou confortada quando uma religiosa disse: “Não se preocupe, nossa vida é simples como a de uma dona de casa.”

Como parte de seu estágio, permaneceu no carmelo durante oito meses, cuidando de uma religiosa de 100 anos que muito a impressionou:

— Ela fala do seu amor a Deus e ao carmelo como se fosse ainda uma postulante.

Apesar dos pais reclamarem do salário que não condizia com o trabalho, fez questão de aproveitar a oportunidade da amizade das religiosas.

— Antes do carisma, houve um encantamento pelas coisas da Igreja. Foi muito importante ser acolhida em uma comunidade paroquial, também por ver a alegria dos seminaristas e o esforço que faziam em vista à ordenação. Foi no engajamento da Igreja que conheci o carmelo, disse Irmã Flávia.

No dia 11 de março de 2006, Flávia ingressou no Convento de Santa Teresa, no bairro que leva o nome da santa padroeira. Na época, a irmã caçula, que era cuidada por ela como uma filha, entrou em depressão e teve que ser internada. Os pais, que tinham confiança nela por sempre tomar a frente das coisas, aceitaram e respeitaram a sua decisão.

— Não deixaria nada se não tivesse recebido o chamado, sobretudo, o dom da vocação. Eu, que sempre fui curiosa, tive a oportunidade de conhecer a Deus no retiro vocacional. Toda escolha comporta uma renúncia. Era passar o fim de semana na praia ou dizer sim a Deus, pontuou.

Foram seis anos de formação e de adaptação ao carisma, entre o postulantado, o noviciado canônico e o da comunidade, e mais três anos de estudos dos santos da ordem, de mariologia, das Sagradas Escrituras e da formação humana.

— Só se conhece o carmelo vivendo no carmelo. É muito mais do que se imagina. Estou há seis anos, mas têm irmãs que estão há 60 anos. Pela vida de oração, contemplação e no trabalho diário vamos tendo e fazendo cada vez mais a experiência do amor de Deus, afirmou irmã Flávia.

O dia ordinário no carmelo começa às 4h35, com o convite da matraca a renovar a consagração a Deus. O dia é dividido em oração, trabalho e estudo até as 20h30, quando começa o silêncio monástico, seguido do apagar das luzes.

A profissão religiosa foi presidida pelo Vigário Episcopal para a Vida Consagrada, o beneditino Dom Roberto Lopes, tendo como concelebrantes o Padre Mario Antônio Barbosa Filho, o Frei André da Cruz e o capelão das carmelitas, Padre Silmar Alves Fernandes, que ocupa o ofício desde agosto de 2010. A celebração foi marcada por mensagens do Arcebispo Dom Orani e do Papa Bento XVI.

— Sempre me senti muito amada por Deus através do carinho das pessoas. O carmelo é uma casa de oração, onde podemos servir a Deus, à Igreja e à humanidade. Ao fazer a experiência de liberdade dos filhos de Deus, hoje livre sou. Desejo que o meu viver seja um ato de gratidão, de amor a Deus. O amor pelo amor. Não vivendo na emotividade, mas no serviço, sobretudo na vivência da fé, da esperança e da caridade, concluiu a Irmã Flávia.


* Foto: Carlos Moioli
* Fonte: Portal da Arquidiocese do Rio de Janeiro