O
dilema de viver a obediência, na graça de Deus, ou cair na desobediência, por
capricho diabólico, está presente ao longo da história humana. Começa no livro
do Gênesis, ou seja, nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, chega até
nossos dias e perdurará ao longo do tempo.
No Gênesis 3, é bem conhecida de todos
nós a narrativa, em linguagem bíblica muito própria, da queda do primeiro
casal, Adão e Eva, no paraíso terrestre, mas que vale a pena recordar, ainda
que de passagem, nesta nossa reflexão.
Nos dois capítulos precedentes do mesmo
livro, se lê que Deus criou tudo o que existe na natureza. Por último, fez o
homem e a mulher e colocou-os no Jardim do Éden para ali viverem cuidando da
criação divina, sem, porém, poderem tocar na árvore do bem e do mal, localizada
no meio do jardim. Enquanto obedeceram à ordem divina, tudo ia bem. Eis, porém,
que, um dia, tentados pelo demônio, em forma de serpente, cederam à tentação e
comeram do fruto proibido.
Perceberam, nesse momento, suas
fraquezas, pois ao contrário do que dissera o diabo, não se tornaram deuses,
mas, sim, perderam o que tinham como criaturas humanas. Viram-se na penúria em
pouco tempo. Daí o provérbio popular que diz, com acerto: “O diabo não dá o que
promete”. Realmente, se ele é o grande deserdado da história, como pode
oferecer aos outros aquilo que não tem a não ser por meio da sedução e da
mentira, arte da qual ele é o pai (cf. Jo 8,44)?
Sim, esse grito sedutor da mentira é
consequência do horrendo brado anterior que Lúcifer havia dado contra Deus ao
ser colocado à prova “Non serviam
(Não servirei!)” (cf. no Catecismo da
Igreja Católica n. 391-395, os dados da fé sobre o assunto). Reflitamos: primeiro
o não ao próprio Deus por soberba (“Eu sou mais que o Senhor!”), obviamente,
essa loucura leva, em um segundo momento, satã a perceber que não conseguiu seu
intento. Desapontado, mas maldoso, tenta o ser humano a fim de que, como ele,
se torne outro grande deserdado dos favores divinos.
A consequência da desobediência vem,
mas, junto à punição Deus faz também uma promessa de grande alcance: “Porei
hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te
esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”. A nota “j” da Bíblia de Jerusalém explica que “o texto hebraico, anunciando
uma hostilidade entre a raça da serpente e a da mulher, opõe o homem ao Diabo e
à sua ‘raça’ e deixa entrever a vitória final do homem: é um primeiro vislumbre
de salvação: o ‘Proto-Evangelho’. A tradução grega, começando a última frase
por um pronome masculino, atribui essa vitória não à linhagem da mulher em
geral, mas a um dos filhos da mulher. Assim, fica esboçada a interpretação
messiânica que muitos Padres (escritores da Igreja nos primeiros setes séculos)
explicitarão. Com o Messias fica implicada sua Mãe, e a interpretação
mariológica da tradução latina ipsa
conteret tornou-se tradicional na Igreja”.
Eis, realmente, que “na plenitude dos
tempos”, o Senhor manda o seu Filho “nascido de mulher” (cf. Gl 4,4), para
resgatar pela obediência o que os primeiros pais perderam pela desobediência. E
obediente até a morte e morte de cruz, o Senhor Jesus venceu o demônio, o mundo
e a morte, sendo elevado à direita do Pai, de onde há de vir para julgar os
vivos e os mortos e seu reino não terá fim, conforme ensina o Credo Niceno-constantinopolitano.
Tudo isso nos mostra que o único caminho
ou a “porta estreita” para seguir o Senhor Jesus é a via da obediência, pela
qual Ele mesmo, sendo Deus e homem verdadeiro, quis trilhar para mostrar, como
exemplar por excelência, a estrada segura que deveríamos percorrer deste vale
de lágrimas até a Jerusalém celeste.
Daí entendermos, nos nossos tempos, que
a primeira grande obediência requerida de todo fiel católico é bem concreta. D.
Estêvão Bettencourt, OSB, grande teólogo brasileiro, escreve: “Deus não nos
fala por canais particulares ou secretos, mas pela Igreja que Ele fundou e à
qual Ele assiste para que transmita integralmente as verdades da fé (cf. Mt
28,19; Rm 10,17; Jo 14,26; 16,13-15). O Concílio Vaticano II nos lembra que o
Senhor Deus quis confiar aos Bispos e à hierarquia da Igreja o carisma da
verdade, isto é, um dom especial para discernir e transmitir as verdades
reveladas (ver Dei Verbum n. 8).
(...) É claro, porém, que nem todos os pronunciamentos das instâncias
eclesiásticas gozam da mesma autoridade: existem definições de fé e de moral ao
lado de orientações e diretrizes cujo peso é geralmente indicado pelo documento
que as promulga; o fiel católico as respeita e deve-lhes a obediência que
exigem” (Curso de Teologia Moral. Rio
de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1986, p. 53).
Ora, quem possui a fé fraca tem imensa
dificuldade de aceitar o que acima está dito. Tal pessoa é capaz de recusar a
palavra do Magistério da Igreja a fim de seguir orientações de correntes
filosófico-religiosas ou, ainda, de acompanhar sua própria mente revoltada
contra Deus e a Igreja.
Isso se dá sem que, talvez, o(a)
próprio(a) desobediente perceba. Na sua seleção muito subjetiva das coisas, ele
(ela) vai separando o que quer do que não quer crer, quem ele quer e quem não
quer obedecer, quando deseja ou não aceitar uma norma superior (ainda que seja
no campo administrativo apenas)... Enfim, acaba sem quase se dar conta, criando
um modo próprio e, portanto, autônomo de viver a sua fé. Tão autônomo que as
palavras dos legítimos Pastores da Igreja já não lhes fazem sentido. Apenas o
seu modo de ser e agir é que valem, afinal por que obedecer se no dia em que
desobedecer será “como deuses”?
São Cipriano de Cartago (†258)
nos ensina: “A Igreja é o povo unido ao seu Pontífice e o rebanho que adere ao
seu Pastor. Em consequência, devemos compreender que o Bispo está na Igreja e a
Igreja está no Bispo, e que, se alguém não está com o Bispo, não está na
Igreja” (Epístola 66, 8,3).
Para
São Cipriano, querer separar a Igreja do Bispo é “desmantelar os membros de
Cristo, despedaçar o corpo da Igreja Católica” (Epístola 44, 3,1). Em
sentido contrário e positivo, respeitar o Bispo significa “aproximar entre si
os membros do corpo dilacerado na unidade da Igreja Católica, reatar o vínculo
da caridade cristã... voltar ao regaço e aos braços da própria Mãe” [a Igreja]
(Epistola 45, 1s).
Vê-se,
assim, que, entre os fiéis dos primeiros séculos, a figura do Bispo já tinha o
destaque necessário que chega até nossos dias. Com efeito, é Dom Dadeus Grings,
Arcebispo-emérito de Porto Alegre (RS), que foi meu bispo em São João da Boa Vista, e
no meu tempo de padre prometi e cumpri minha obediência ministerial, quem, após
recordar o ensinamento acima, escreve que, diferentemente do que alguns pensam,
“O Bispo possui ‘todo poder ordinário próprio e imediato’, que requer para o
exercício de sua tarefa pastoral, exceto naquelas causas que o Sumo Pontífice
houve por bem reservar a si” (...) E mais: o Bispo cumula, no governo da
Diocese, o poder executivo, legislativo e judiciário (Curso de Direito
Canônico. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2004, p. 25-26).
Em novembro de 1998, em visita ao solo austríaco, o Santo Padre
João Paulo II lembrou que a Igreja não é uma democracia, mas, sim, o povo de
Deus que substitui a qahal
(assembleia) do Antigo Testamento. Esse povo de Deus tem uma constituição
hierárquica querida pelo próprio Senhor, pois, diferentemente de um governo
republicano, eleito pelo povo, na Igreja é Cristo quem escolhe, por meio do
sucessor de Pedro (o Papa) e dos outros Apóstolos (Bispos), aqueles que estarão
à frente das comunidades (cf. Pergunte e
Responderemos n. 441, fevereiro de 1999, p. 96).
É de notar ainda que a Igreja não é a mera soma dos seus membros,
mas uma realidade divino-humana, por isso transcendente aos humanos. Ela é o
Corpo Místico de Cristo prolongado na história dos homens (cf. 1Cor 12,12-21;
Cl 1,24), tendo, assim, diferença em relação aos governos meramente terrenos
que, mesmo eleitos pelo povo, também não agradam a todos.
O fiel católico tem, pois, a obrigação de aceitar com obediência
filial aquele que a Igreja designa como Pastor de uma porção do povo de Deus,
que é a diocese, mas pode, sim, apresentar ao Bispo sua opinião reverente e bem
fundamentada acerca de temas que dizem respeito à vida eclesial, conforme o
cânon 212 do Código de Direito Canônico.
Aliás, ao comentar esse dispositivo legal, o Pe. Dr. Jésus Hortal,
SJ, diz que “Ao direito dos fiéis de apresentar suas necessidades e suas
opiniões aos Pastores, corresponde o dever destes de acolher com interesse
essas manifestações e de submetê-las a estudo sério”. Para isso, há os horários
de atendimentos na Cúria Diocesana, momentos abertos não só aos católicos, mas
a todas as pessoas de boa vontade desejosas de conversar com o Bispo assuntos
importantes, a fim de agirem como filhos da luz e não das trevas (cf. Jo
3,19-21).
Finalizamos esta reflexão com um ensinamento extraído da coleção
de Apoftegmas (sentenças dos
primeiros monges do deserto) a fim de realçar, no campo da fé, único a dar
sentido maior ao voto de obediência feito na vida religiosa, leiga consagrada
ou no sacramento da Ordem.
A sentença conta que “quatro cetiotas (habitantes do deserto de Cétia),
revestidos de peles, foram falar com o grande abade Pambo. Cada qual indicou a
principal virtude de seus companheiros. Um deles jejuava muitíssimo; o segundo
nada possuía; o terceiro era dotado de muita caridade. Do quarto, porém,
disseram que havia vinte e dois anos que perseverava na obediência a um ancião.
Respondeu-lhes o Abade Pambo: ‘Digo-vos que a virtude deste último é a maior,
pois cada um de vós, por sua própria vontade, alcançou a virtude em que se
distingue; este, porém, tendo amputado a própria vontade, obedece à vontade de
outrem. Sem dúvida tais homens são confessores, caso mantenham até o fim essa
observância” (PG 65, 730).
Possam estas reflexões calar fundo no
coração e na mente de todos quantos querem ver na Igreja a túnica inconsútil de
Cristo... Para a maior glória de Deus!
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de
São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ