Terminada a Copa do
Mundo, maior evento futebolístico do planeta, com a vitória da Alemanha sobre a
Argentina, no Maracanã, na Cidade Maravilhosa do Rio de Janeiro, é hora de
propormos uma oportuna reflexão.
O primeiro é o
aspecto espiritual do verbo “vencer”, que para o fiel cristão é muito familiar
e já está nas primeiras páginas bíblicas. Ali, Adão e Eva, seduzidos pelo
pecado, são derrotados, mas o Senhor Deus promete, no chamado Protoevangelho
(Gn 3,15), a vitória da Mulher sobre a serpente ou do Bem sobre o Mal.
Todas as vitórias na
Sagrada Escritura parecem encerrar um paradoxo ou uma grande contradição, uma
vez que supõem sofrimentos e aparentes derrotas. Daí o Servo de Javé, prefiguração
de Cristo, em Isaías 52,13-53,12, ser vitorioso porque se entrega ao sacrifício
pelo próximo. Também os mártires, homens e mulheres que, justamente, deram seu
sangue para não trair a fé professada, depois de tantos sofrimentos, recebem,
na eternidade, a coroa da vitória (cf. Sb 4,2).
No Novo Testamento, o
Senhor Jesus é “o mais Forte que vence o forte” (cf. Lc 11,14-22), o General
que volta da guerra vitorioso, arrastando consigo as potências adversas,
despidas de suas forças e exibidas ao mundo inteiro (cf. Cl 2,15); já o último
inimigo a ser vencido é a morte, no fim dos tempos (1Cor 15,24-27). Cristo
venceu o mundo (cf. Jo 16,63) e aqueles que com Ele vencerem sentar-se-ão no
Seu trono (Ap 3,21) para reger as nações (cf. Ap 2,26), receberão um nome novo
(cf. Ap 2,17), comerão o fruto da árvore da vida (cf. Ap 2,7), tornar-se-ão
coluna no templo de Deus (cf. Ap 3,12) e não temerão a segunda morte (cf. Ap
2,11). Em suma, seremos como os oficiais do General, Cristo, a triunfar com Ele,
derramando Seu perfume por onde passarmos (2Cor 2,14).
Eis, porém, que
encerrada a disputa futebolística, com momentos mais felizes ou mais tristes,
conforme as preferências do torcedor, a grande lição que fica é a seguinte: o
torneio mundial de futebol, chamado de Copa do Mundo, nos ajuda a refletir
sobre a magna disputa de nossa vida cristã diária. Sim, a cada dia somos
chamados a ser a presença viva de Cristo no mundo por meio de nosso sincero
propósito de conversão de vida, de ajuda ao próximo, de participação na vida
política e social do País etc.
Tudo isso o fazemos certos
de que, se os competidores deste mundo buscam uma coroa perecível, nós buscamos
a coroa imperecível (cf. 1Cor 9,24s), aquela que nem a traça estraga nem a
ferrugem desvaloriza (cf. Mt 6,20). Em Cristo Jesus , somos, apesar de tantas cruzes,
mais do que vencedores hoje e sempre.
O segundo ponto desta
reflexão trata da paz no futebol e em suas torcidas. Aqui é preciso recorrer a
estudiosos do assunto, como é o caso do Dr. Maurício Murad, sociólogo pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro e com largos anos de experiência nas
pesquisas sobre o futebol e seus entornos.
Esse autor distingue
uma coisa que a nós, leigos no assunto, pode passar despercebido: há uma
violência do futebol e uma violência no futebol. Eis como Murad as
distingue: “Não há dúvida de que existe também a violência do futebol, própria dessa modalidade esportiva. Afinal, trata-se de
um esporte coletivo, de alta competitividade, de contato físico, o mais
apaixonante e massivo de todos, e jogado com os pés, bem mais instintivos e
‘brutais’ do que as mãos”.
“A violência em campo reduz a beleza do
espetáculo e o tempo de jogo corrido, devido ao aumento do número de faltas e
de cartões (amarelo e vermelho), à interrupção constante da partida, às lesões
(muitas delas graves), ao rodízio de faltas para fugir de punições severas
(orientação de treinadores e dirigentes), à permissividade dos árbitros
(despreparados, muitas vezes) e, às vezes, à impunidade da Justiça Desportiva”.
Dito isso, o autor citado
passa ao segundo ponto, ou seja, a violência no futebol, com as seguintes colocações: “Então, quando se diz que
existe uma violência própria desse microcosmo social, o futebol, trata-se de
uma afirmação verdadeira. Porém, as práticas de violência mais sérias e que
agridem a consciência são de caráter mais geral, são as que ocorrem entre
torcidas organizadas, dentro de estádios e mais ainda fora deles” (...)
Poderia se perguntar,
então, se todas essas cenas de selvageria que estão no futebol, mas não são do
futebol nascem no calor da disputa pela bola ou não, quer dizer: é apenas o
jogo que motiva as confusões ou existem outros fatores? – Murad responde que há
outros fatores. Com efeito, diz ele: “A violência que se manifesta no futebol tem sua origem em questões
mais profundas de ordem social. Não é apenas o resultado daquilo que acontece
nos estádios, embora também isso contribua”.
Mais: “os principais
exemplos dessas questões sociais são o desemprego e o subemprego, a falta de
consciência social, de educação e cidadania, o tráfico de drogas e o crime
organizado, o descaso das autoridades, a desagregação dos valores familiares e
escolares, a falta de policiamento ostensivo e preventivo, a impunidade, a
corrupção. São as chamadas macroviolências, que aparecem no microcosmo do
futebol assim como em outros, por exemplo, no trânsito, na escola, na família”
(A violência no futebol. São Paulo:
Benvirá, 2012, p. 9-11).
Logo depois, já no
quarto capítulo da mesma obra, vem o título alarmante, mas verdadeiro: “Mortes
de torcedores: nesse quesito somos campeões” (p. 37-38). Aí se lê que entre os
anos de 1999 e 2008, o Brasil foi campeão mundial de mortes de torcedores: 42
mortes em dez anos, ou seja, uma média de 4,2 por ano. Com esse registro, nosso
país ultrapassa a Itália e a Argentina, que sempre estiveram à frente do Brasil
no período investigado.
O problema, contudo,
não para aí. Chama nossa atenção também o crescimento das mortes: nos últimos
dez anos (1999-2008) “a média anual foi de 4,2, mas nos últimos cinco anos o
número aumentou para 5,6 e, nos dois últimos, para 7 óbitos ao ano” (p. 38). O
sociólogo carioca continua dizendo que, em 2009 e 2010, chegamos a 9 e 12
mortos por ano, respectivamente.
Eis porque neste
setor, em especial, deve haver maior investimento não apenas (embora, quase
sempre, importante) no setor repressivo, mas, sim, de inteligência das forças
de ordem, a fim de detectarem e prevenirem a violência que grassa esse esporte
tão popular no mundo e, por essa razão, deveria estar aberto a todos, como,
aliás, garante a Lei (cf. Constituição Federal art. 217). O que se vê, no
entanto, é um medo generalizado de ir aos estádios ou mesmo de ficar em
determinados lugares públicos em dias de grandes disputas de futebol.
É certo que a Igreja
se interessa muito pelos esportes e vê neles um meio de congraçamento e
fraternidade, de modo que deve ser sempre estimulado, assim como as festas das
torcidas, com seus mosaicos, coreografias, cantos incentivadores ao time nas
arquibancadas, bem como os trabalhos sociais de doações de alimentos, roupas,
sangue etc. que, especialmente, as torcidas organizadas realizam no seu dia a
dia. Esses setores não podem ser marginalizados, mas, ao contrário, acolhidos e
chamados ao diálogo, ao respeito mútuo e à paz universal. Durante a Copa do
Mundo de Futebol deste ano tivemos a campanha contra a discriminação.
Estas iniciativas não
precisam, nem devem se dar só sob a batuta do Estado, mas das próprias partes
interessadas, no caso as torcidas, com ou sem um mediador externo. Nesta
mediação há grupos e entidades atuando, nos últimos anos, que buscam promover
reuniões, palestras, artigos elucidativos, acordos entre as torcidas
organizadas interessadas em manter a paz e apoiar o seu clube, dando também
direito ao torcedor rival de torcer, sem constrangimentos, pelo clube dele.
A Igreja, embora
louve todas as boas iniciativas, não entra, evidentemente, no campo específico
e técnico de como se fará esse processo de paz, mas defende o princípio da
subsidiariedade, que é assim definido pelo Papa Pio XI: “Aquele importante
princípio, que não pode ser desprezado ou mudado, permanece fixo e inabalável
na filosofia social: Como não se pode subtrair do indivíduo e transferir para a
sociedade aquilo que ele é capaz de produzir por iniciativa própria e com suas
forças, assim seria injusto passar para a comunidade maior e superior o que
grupos menores e inferiores são capazes de empreender e realizar. Isso é nocivo
e perturbador também para toda a ordem social. Qualquer atuação social é
subsidiária, de acordo com a sua natureza e seu conceito. Cabe-lhe dar apoio
aos membros do corpo social, sem os destruir ou exaurir. [...] Quanto mais fiel
for o respeito dos diversos graus sociais através da observância do princípio
de subsidiariedade, tanto mais firmes se tornam a autoridade social e o dinamismo
social e tanto melhor e mais feliz será o Estado” (Quadragesimo Anno, n. 79; cf. também São João Paulo II na Centesimus Annus n. 48).
O terceiro ponto é do
progresso em nosso país devido à Copa. Em outras palavras, que o grande evento
esportivo possa ter sido para cada brasileiro uma estrela a apontar um futuro
duradouro de luminosidade e não apenas um cometa que passou e só alguns se
beneficiaram em vê-lo, enquanto a grande maioria continuou como estava,
excluída dos benefícios sociais necessários para a vida do dia a dia.
Nosso país clama,
como se tem dito popularmente, por padrão “FIFA” na saúde, na moradia, na
educação, na segurança, nos transportes públicos, na defesa da vida –
especialmente aquela mais fragilizada no ventre materno ou no ocaso de seus
dias –, da família, célula-mãe da sociedade, da democracia verdadeira que
tutela a liberdade de expressão sem ferir o direito do próximo, no respeito aos
valores religiosos e culturais do nosso bom povo brasileiro etc. Esse é um dos
grandes legados esperados no campo social e político.
Não é necessário
demorar neste ponto, bastante visível e desejado por todos, pois quero crer que
a seu devido tempo as pessoas e instituições irão, dentro da lei e da ordem,
fazer seus respectivos pronunciamentos, elogiando o que se fez de bom e
cobrando o que se deixou por fazer. Tal cobrança é, sem dúvida, não só um
direito, mas um dever de cada brasileiro(a) que, digna e honestamente, exerce
sua cidadania dentro dos meios legítimos que lhe são assegurados por nossa Constituição
Federal.
Tenha, pois, a título
de reflexão finalizadora, a palavra de Patrick Mignon, sociólogo francês, ao
escrever, com bastante perspicácia, sobre os impactos de uma Copa, as seguintes
palavras: “Desde o fim da era dos boicotes dos Jogos Olímpicos – Moscou em 1980
e Los Angeles em 1984 –sediar grandes eventos esportivos se tornou uma questão
para os Estados que querem mostrar a todo mundo seu tamanho e sua capacidade de
organização, mas também em âmbito interno, que desejam agir sobre suas sociedades,
criando dinâmicas positivas fundadas sobre os trabalhos de modernização das
cidades-sedes e sobre o fervor das populações. Podemos dizer que não passam de
estratégias enganadoras de tudo poder” (Hooliganismo
e Copa de 2014. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014, p. 109).
Que um grande legado
da Copa do Mundo, do qual tanto se fala, seja uma reflexão sobre essas
realidades importantes do dia a dia de nosso povo e a necessidade de
conquistarmos tempos melhores para todos.
Nesse sentido, a
palavra do Papa Francisco recordando que ninguém vence sozinho, nem no estádio
(vimos isso acontecer com clareza) e nem na vida (eis o desafio), nos una na
paz de um tempo novo para nossa sociedade.
Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.
Arcebispo
Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ