terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Penitência e conversão

Ao iniciar a Quaresma, a liturgia da Quarta-feira de Cinzas nos coloca diante de uma caminhada a ser trilhada – a da conversão: “convertei-vos e crede no Evangelho” porque “és pó e ao pó hás de tornar”. Para isso, nos indica caminhos de penitência: o jejum, a esmola e a oração são três práticas a serem vividas de modo especial durante a Quaresma. Contudo, vale ressaltar, que são formas de penitência que devem permear a vida do cristão durante todo o ano. Vamos refletir sobre o jejum como prática penitencial. Mas, qual é o sentido da penitência no cristianismo? Somos uma religião da dor, do sofrimento ou do masoquismo físico, espiritual ou psicológico?
Numa sociedade dominada pelo hedonismo, apresenta-se como surreal a pregação e motivação da Igreja para que seus fiéis possam viver a penitência. A sombra da Cruz se apresenta como espinhos que ferem a consciência do homem moderno. Muitos admiram o cristianismo, mas consideram que existem formas e vivências arcaicas, próprias de uma cultura ultrapassada.
Esta visão negativa do catolicismo nasce de uma concepção equivocada do significado, importância e utilidade da penitência. Alienados são aqueles que fecham os olhos para a realidade e buscam, sem medidas, o prazer e a fuga da dor e do sofrimento. Pois, o prazer desenfreado é efêmero e, quando se vai, fica apenas o vazio interior e uma alma dilacerada. E a dor e o sofrimento são visitas indesejadas, e por mais que mudemos de endereço para escapar, mais cedo ou mais tarde escutamos suas batidas na porta de nossas vidas. Quando eles se apresentam, nasce o desespero e a depressão.

A penitência, uma disposição para o amor

No cristianismo, através da prática da penitência nos preparamos para enfrentar com esperança as vicissitudes da vida. Além disso, o objetivo da penitência é para dispor nossa vida a uma mudança radical para aprofundar o nosso encontro com Cristo.
Por isso, afirma-se que a grande novidade de Cristo é colocar em primeiro plano a dimensão da penitência interior, ou seja, a conversão (cf. CIC, 1430). A penitência visa, portanto, a conversão interior, a conversão do coração. Sem esta dimensão, todo gesto externo torna-se vazio e sem sentido. Os gestos externos nos ajudam e são consequências dessa mudança.
O coração do homem vai se endurecendo, e, por isso mesmo, deve ser constantemente renovado e purificado pela oração, pelo jejum e pela esmola. A penitência é um meio magnífico para que Deus obre e transforme nossas vidas, como lemos na passagem do profeta Ezequiel: “Eu vos darei um coração novo, porei no vosso íntimo um espírito novo. Tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei coração de carne.” (Ez 36, 26)
O modo de viver e pensar a penitência são transformados por Jesus. Ela não se reduz apenas a um esforço ascético do homem para se purificar e encontrar-se com Deus. Exige sim um esforço, mas é um esforço para dispor nosso coração e alma para que Deus faça sua obra e possa agir através da graça. Assim, é imprescindível a penitência em nossa vida cotidiana, mas que seja vivida de modo especial na Quaresma.
E por que a Quaresma é especial? Porque ao final dela viveremos o mistério central de nossa vida cristã: o Tríduo Pascal, a Páscoa da Ressurreição de Cristo. Celebramos no tríduo pascal a instituição da Eucaristia e do Sacerdócio, a paixão, morte, silêncio e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Esse tempo é um momento forte de encontro e conversão e não podemos perder esta oportunidade para nos renovar no amor. Não há caminho mais curto para a felicidade plena do que viver a experiência Pascal, e vivê-la de tal modo que Cristo possa fazer uma operação espiritual e trocar nossos corações.

Caminho de conversão

Alicerçados na verdade sobre o significado e valor da penitência, podemos construir uma vivência autenticamente católica das práticas próprias da Quaresma: o jejum, a esmola e a oração. Essas três dimensões, permeadas pela nova perspectiva cristã do amor e conversão, (se) transformam-se em realidades completamente novas. O jejum, em sua essência, significa e tem como objetivo a conversão de si. A esmola possui como núcleo a conversão para o irmão. E a oração se direciona para a conversão a Deus e em Deus.
As três devem ser vividas como se fosse uma única peça que se divide em três atos. A conversão só será completa se entramos pela via da penitência, através de suas manifestações externas, que são comuns a todos os católicos.
A prática externa do jejum só alcançará sua finalidade se nos ajudar a abrir à conversão, e terá pleno valor se levar a atitudes novas na vida. Uma não exclui a outra, são vias que se completam. Mesmo que não tenha o desejo interior, muitas vezes, a prática externa ajuda a despertá-lo, já que o ser humano é uma unidade de corpo e alma.

Modo concreto de viver o Jejum e a abstinência

Por sua importância, esta prática está presente no Código de Direito Canônico (cf. CDC 1249-1253). É necessário fazer uma distinção entre o jejum e a abstinência.
A Abstinência é não alimentar-se de carne (e seus derivados) ou outro alimento, segundo determina a nossa Conferência Episcopal, na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa, e pode ser substituída por outra prática penitencial em todas as sextas-feiras do ano (salvo os dias em que coincide com alguma festa ou solenidade da Igreja). Ela está destinada a todos fiéis católicos acima de 14 anos.
O Jejum é para todos fiéis católicos maiores de idade, até os 60 anos. E concretamente significa abster-se de uma refeição forte durante o dia, substituindo por uma alimentação mais frugal, na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira da Paixão.
Por deliberação da CNBB, e delegação expressa no Código de Direito Canônico pela Santa Sé, deu-se permissão para que todos os católicos possam escolher nas Sextas-Feiras do ano, inclusive durante a Quaresma, trocar a abstinência de carne por alguma forma de penitência, principalmente uma obra de caridade ou um exercício de piedade.
Estas são práticas concretas que todos os católicos devem realizar. No entanto, aquele que ama e quer caminhar na conversão não pode buscar apenas o mínimo. O jejum e a abstinência devem nos levar a fazer a vontade de Deus.
A prática do jejum e da abstinência ajuda a fortalecer nossa vontade, tantas vezes rebelde, para educá-la a acolher e realizar a vontade de Deus. Não nos limitemos ao mínimo, e unamos o jejum da alma ao jejum do corpo. Ele nos é oferecido como meio para restabelecer a harmonia com nós mesmos e com Deus.
São Paulo explicita bem esta desarmonia advinda pelo pecado original e pessoal. “Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero”. (Rm 7,19). Essa divisão interior, própria de nossa natureza caída, é purificada pela penitência, que nos conduz ao caminho da unidade. O homem, dominado pelo pecado e com a vontade enfraquecida, se transforma num desconhecido para si mesmo. A penitência espiritual e corporal é um meio maravilhoso para deixar a graça de Deus tocar e curar a alma, restabelecendo a unidade inerente ao ser.
A prática do jejum não é um sacrifício a mais e pesado, mas é o remédio que nossa consciência anseia. Não precisamos fazer sacrifícios especiais. A nossa vida se apresenta imersa num conjunto de elementos que exigem um esforço especial. Não precisamos inventar novas formas maravilhosas e mirabolantes. Cada um reflita em sua vida e coloque na sua frente todos os elementos que lhe exigem sacrifícios. Então, pegue tudo isto e ofereça a Deus. Por exemplo, se para você é um sacrifício enorme levantar cedo, ou ter que ficar de pé no ônibus, ou então, conviver com um colega de trabalho que possui um temperamento difícil, ofereça estes momentos, grandes ou pequenos, a Deus. Transforme o sacrifício em oração. De fato, o significado de sacrifício é “fazer santo, ou sacro”. Este é o significado da penitência: converter a nossa vida a Deus, através da santificação de nossa vontade. É resgatar a unidade interior.
Aproveitemos a Quaresma como momento especial de conversão. É o grande momento no ano da Igreja de renovar a nossa vida! Deixemos que Cristo transforme nossas vidas. Não tenhamos medo de nos entregar ao mistério do amor divino. Peçamos a intercessão da Santíssima Virgem, ela que estava em pé junto à cruz e conhece em primeira pessoa a dor e o sofrimento.
   
† Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ